Partido SA
Após as Eleições o que nos resta de Poder? O que torna democrática a representação política? O voto é a arma do Povo ou uma arma para legitimar o poder dos poderosos? Quem elegemos e como elegemos?
O direito ao voto pode originar uma democracia representativa, mas esta não é necessariamente uma democracia eleitoral. As campanhas eleitorais pretendem fazer crer que sim. O caso do derrube o anterior governo demonstra a diferença: os cidadãos que votaram nas anteriores eleições e elegeram os seus representantes — os deputados da Assembleia — para um mandato de quatro anos viram o seu voto ser “anulado” pela utilização de meios formalmente legítimos por parte de instituições de outra entidade, o Estado. O resultado das eleições, em particular o volume de votos atribuídos a um partido “SAD, para utilizar uma imagem vinda do futebol, tal como o líder do Chega, expõe a fragilidade da representação como trave mestra de um regime democrático.
Na realidade, quer o derrube do anterior governo, quer o resultado das eleições são consequência da natureza ‘circular’ da interpretação por parte das ‘instituições aristocráticas’ do seu poder natural de utilizar o voto popular em seu benefício, ou segundo as suas interpretações. A ideia de que a democracia representativa dá a voz ao povo, guiando “a ação e o juízo políticos dos cidadãos”, é boa, mas não corresponde à prática. A relação entre o voto popular e o controlo do poder do Estado é bem mais complexa do que a ideia muito divulgada de que o povo é soberano. Não é. O soberano é o Estado e é falaciosa a definição de o Estado ser o povo politicamente organizado. O Estado é uma entidade autónoma do povo, é a entidade que regula a vida dos cidadãos. É o Estado que exerce a soberania, um poder sem limites na ordem interna através de instituições por ele criadas, uma delas o “governo representativo”.
No Ocidente o governo representativo, que deu os primeiros passos no século dezessete, em Inglaterra, assegurou sempre o elitismo nas instituições políticas, no Estado, com a legitimação popular através de eleições com o oto mais ou menos condicionado a certos grupos sociais (homens alfabetizados, por exemplo, ou com um determinado nível de rendimentos) e pela organização em partidos, cuja função era acima de tudo a da “integração da multidão”. Após a Segunda Guerra os partidos “democratizaram-se” apresentando-se como instituições de massas, unificadas por um credo político de tipo religioso. Na realidade apenas formalmente deixaram de ser organizações de notáveis, de detentores do poder, apoiadas por aparelhos eleitorais assentes na distribuição de bens públicas e na ação dos media para “formar uma opinião e obter a servidão voluntária”. As eleições continuaram a fazer, tal como do antecedente, parte do arsenal legitimador do exercício do poder, mas não o determinavam, estabeleciam uma relação entre os cidadãos e o Estado, uma entidade que substituiu o soberano, mas não tornavam, nem tornam os cidadãos soberanos.
A globalização da sociedade da informação que ocorreu no final do século vinte alterou os instrumentos de unificação das massas. Os partidos ideológicos, as grandes igrejas, os meios de comunicação confinados às fronteiras dos Estados, ou das línguas nacionais foram submergidos pela informação e pelos negócios sem fronteiras físicas e esta alteração induzida pela tecnologia obrigou as oligarquias a alterarem os instrumentos de legitimação do seu poder. Recriaram os seus partidos como partidos empresa, “partidos SA” como já haviam feito com a cultura de massas através dos programas de televisão, ou dos clubes desportivos, por exemplo.
O fenómeno do partido empresa, do “partido SA” surgiu em Itália com o Forza Itália, de Silvio Berlusconi, o magnata que foi primeiro ministro, dono de cadeias de televisão e de jornais reunidos no conglomerado Mediaset, do clube AC Milan. Embora o partido SA de Berlusconi tenha obtido sucesso, impondo os negócios do proprietário como interesses do Estado, o modelo deu origem a vários processos de corrupção e o rosto a descoberto do soberano foi substituído pelo de um CEO, uma máscara personificada da marca de legitimação do poder que evita a exibição da natureza privada do partido e afasta eleitores mais exigentes.
Os novos partidos são “empresas de angariação de legitimadores de poder”. Substituem a ideia clássica de que os representantes eleitos são a expressão do direito de os cidadãos participarem de algum modo na produção das leis, que os processos eleitorais constituem uma delegação da soberania que admite opiniões diversificadas e decisões sujeitas a revisão.
Para os novos partidos populistas a representação política é uma autorização eleitoral, um negócio de venda da alma, do tipo do estabelecido entre Fausto e o Diabo. As eleições “engendram” a representação, mas não a dos eleitores. Os eleitores são os ‘Fausto’ do negócio, os otários, em linguagem popular. Tocqueville definiu o que julgo ter sido o paradigma da organização política cidadãos ocidentais, os partidos, como associações que reúnem e separam os cidadãos de acordo com as interpretações de problemas gerais, ou de “igual importância para todas as partes do país”. O aparecimento e o percurso de vida de partidos como o Chega, ou a Iniciativa Liberal, em Portugal, semelhantes a outros na Europa, de Trump, Bolsonaro ou Milei nas Américas, são exemplos do fim da definição de Tocqueville de partidos e da sua substituição por empresas que criam representantes dos detentores do poder real, os financeiros, os grandes industriais, as oligarquias em geral, por empresas que criam eleitores como os proprietários dos aviários criam frangos, mas ainda assim sujeitos a menos controlo de idoneidade do que quem vende galináceos. A representação que os partidos SA se propõem fazer resulta de um contrato com os seus financiadores e não com os seus eleitores. O juízo e a opinião dos representantes eleitos pelo povo, que deviam ser os pilares da soberania, são, nestes partidos máscara como o Chega ou a IL, substituídos pela venalidade e pelo engano.
Os partidos SA seguem o modelo de negócio que transformou os clubes desportivos em SAD. Não é um acaso que o presidente do Chega tenha sido recrutado no “mundo do futebol SA”. O objetivo dos “promotores” de partidos SA é transformarem os seus eleitores em membros da claque que chefiam. Ventura representa para o sistema político o mesmo que Madureira, o líder da claque superdragões do FC Porto representa para o mundo do futebol. As claques do futebol foram o ensaio realizado pelos poderes (o sistema) para imporem novos modelos de representação política. O objetivo dos partidos SA é que os eleitores em geral tenham o mesmo poder na definição das políticas da sociedade que os sócios de um clube de futebol tenham nos negócios dos seus “investidores”, financiadores e patrocinadores: Nenhum!
O resultado destas eleições, tal como a de outras eleições na Europa e nas Américas devia ser motivo de discussão do poder de representação. Não é porque a representação foi capturada por quem forma a opinião e quem a forma paga para que não se discuta a origem do seu poder.